Tomaz Fantin e Élida Tonetto
Pela esquerda, Théo ultrapassou um velhinho. Eram os mais lentos. Atravessou um sinal vermelho, mas foi obrigado a parar logo a seguir. Tomou um gole de água na garrafinha do “Tour de France”.
Sonhava com aquele bairro revitalizado, os muros lotados de grafites e sem moradores de rua. Na frente de um prédio de coworking trancou sua bicicleta Specialized Speed de carbono e subiu de três em três os degraus que levavam à sala de reuniões. Rebeca, em pé, já fumava um cigarro fino e comprido. Maria, vestindo um uniforme laranja, terminava um chá de camomila:
— Bah, bom dia, ném? — Théo sentou-se na frente de Maria e colocou os pés em cima da mesa. Alisou o coque.
— Dia — respondeu Maria baixando os olhos para suas botinas.
Rebeca deu uma piscadinha para Maria:
— Ele deve ter chegado de manhã em casa, foi pra farra, pegador das comunistinhas? — Rebeca apagou o cigarro com a ponta da bota de salto alto e sentou-se ao lado de Théo.
Rebeca e Theo de um lado, Maria do outro da mesa. O rapaz puxou uma pasta cheia de papéis e alcançou para Maria. Rebeca foi ligando um tablet e já dizendo:
— Empreendedorismo! Inovação! O futuro é agora, Maria!
— Se tu diz...— Maria engoliu o chá e cruzou os braços, tinha que varrer vários quarteirões antes de anoitecer, lá no centro, ainda por cima.
Théo acendeu um cigarrinho artesanal orgânico de ervas medicinais e Rebeca abriu um amplo sorriso de dentes alinhados e brancos, alguns sinais da última sessão de botox incomodaram e ela fechou um pouco o sorriso:
— Não precisa fazer essa cara, Maria, pensa no quanto vai melhorar a vida de vocês, um bairro to-tal-men-te novo...
Foi interrompida por Théo:
— Se pá, vocês vão ganhar muita grana com o turismo sustentável alternativo, tá punk trazer turistas com essa favelinha cheia de lixo aqui na porta.
— Eu até fiquei com medo de estacionar minha SUV aqui na frente, Maria.
— Coloquei três trancas na bike, pinta.
Rebeca esticou o tablet na direção de Maria e mostrava algumas imagens passando para o lado com a tela touch screen. Théo suspirou e apontando para a janela que dava para um depósito de uma cooperativa de reciclagem:
— Isso será substituído por pubs, lojas de artigos sobre astrologia, constelação familiar, containers que servirão hambúrgueres de soja, crossfit, beach tennis! Ciclovias e vagas de estacionamento...
— Ali onde fica a cooperativa em que trabalham meus filhos e a casa dos meus pais?
— Saca só — Théo reacendeu o cigarro — hoje vocês ficam só revirando o lixo, é digno? Até é! Mas vocês também serão os empreendedores no novo bairro, tu poderá vender docinhos veganos...
— Veganos? — Maria arqueou as sobrancelhas.
— É, ou tipo assim, fazer outra coisa...
Rebeca pegou na mão de Maria por cima da mesa:
— No que o teu marido trabalha hoje?
— Na cooperativa de reciclagem e corta cabelo no fim de semana.
Théo e Rebeca se entreolharam abrindo um largo sorriso:
— Tu já é empreendedora, brother!
— Vocês poderão alugar um estúdio no novo prédio da Welnicky...
— E se pá fazer uma barbearia hipster com ceva artesanal!
Maria arqueou ainda mais as sobrancelhas. Pegou o celular e começou a digitar:
— Tem wi-fi?
— É inovaçãohightech, senha pelavidadetodes — informou Théo.
Rebeca levantou e caminhou até a bolsa Louis Vitton, retirou um espelhinho por onde se olhava e retocava a maquiagem. Théo tirou a jaqueta de materiais recicláveis com a imagem da Frida Kahlo e colocou na cadeira. Maria olhando nos olhos dos dois:
— E o povo vai morar onde?
— Onde vocês quiserem! A grana da indenização vai derrubar essa burocracia toda, vocês poderão morar no centro ou, quem sabe, né? Numa casinha em algum bairro mais tranquilo com horta e tudo, cerquinha branca, eu fiz um croqui usando inteligência artificial, quer ver?
Maria disse que não precisava. Théo armou uma cara bem séria:
— A gente até vai fazer uma pracinha em memória da velha vila e preservar a história que vocês construíram aqui.
— Compromisso jurado, jurandinho — Rebecca cruzou os dedos em sinal de promessa.
— Só que tem um probleminha, Maria...
— Nem todo mundo pode querer sair assim de boas, tá ligada?
— E é aí que tu entra, querida!
— Nos ajudando a resolver esse pepino, brother.
— O nosso interesse é social, legítimo, pelo bem da comunidade, sabe?
— Tanto, que a gente pode dar uma ajudinha a quem nos der uma ajudinha, tá ligada?
— Aceita outro cafezinho, Maria?
Maria negou. Rebeca continuou:
— Se tu nos ajudar a convencer os mais resistentes, a gente pode te dar um valor duas vezes maior que a indenização.
Théo fez um gesto com a mão:
— Até deixar vocês ficarem num cantinho do bairro, a gente ajeita algum terreno mais próximo do porto, o que facilita se vocês forem empreender entregando docinhos sem glúten aqui no novo bairro.
De repente, um som de vozes se aproximava. Gritos da rua. Sirenes. Helicópteros. Um carro de bombeiros parou na frente do prédio de coworking:
— Saiam daí!
— É a enchente!
A água brotava por todas as bocas de lobo. Uma multidão corria no meio da lama. Carros boiando. Animais de estimação tremendo. A pia do banheiro e a privada devolviam água aos golpes. A SUV de Rebeca submergiu. A bicicleta de Theo desapareceu.
— Eu tinha comprado essa magrela parcelada em 24 vezes.
Maria desceu correndo as escadas na direção da cooperativa de catadores, onde as pessoas tentavam erguer algumas coisas. Theo caminhava de um lado para o outro olhando notícias no whatsapp:
— A comporta mais próxima estourou e a casa de bombas foi desligada, isso aqui vai ficar embaixo d`água, o que vamos fazer, Rebeca?
— Mandei uma mensagem e meu marido vem buscar numa lancha de um conhecido, amanhã vamos pra Camboriú.
— E a revitalização?
— Isso é depois com o governo federal.
Um carro de som da prefeitura anunciava que Maria e sua família precisariam deixar a casa e ir para um abrigo provisório lá na Universidade Federal.